Um verdadeiro espanto, só pode ter sido, tal qual como deve ter sentido o maior criador de vacas do Norte de Moçambique, conhecido pelo seu apelido de Garcês, quando um certo dia viu um feiticeiro nianja ressuscitar um morto.
Conta-se que este intrépido português, homem robusto, atarracado mas hercúleo, de não mais de um metro e sessenta de altura, cabelo crespo e moreno, conhecido por uma coragem nunca vista e sem igual, possuiria em meados dos anos 70 mais de dez mil rezes numa extensa propriedade de latifúndio no Niassa, pouco tempos antes da independência de Moçambique e a sua separação do último império português.
Contam também que a sua imensa criação de gado bovino muito se ficaria a dever à especial bênção que ele lançava sobre os animais, lhe ensinada pelo feiticeiro nianja, assim fazendo-os proliferar na razão espantosa de cada vaca parir à vez dois bezerros.
Segundo os habitantes naturais do Niassa o dito feiticeiro teria já de vida mais de duzentos anos, no que eu sou tentado a acreditar por um certo dia o ter visto também.
A sua cara enrugada e velha como a de uma múmia, os seus dentes pontiagudos e afiados pela sua faca de pedra que trazia presa à cintura por uma tigrada pele seca de jiboia e com a qual sangrava também os males dos doentes, convenceram-me, desde o dia em que o vi, nos meus sete anos de idade, tanto o medo terrífico como a idade bicentenária daquela seca e estreita figura do assustador feiticeiro.
Essas terras africanas, do norte de Moçambique, qual resto paradisíaco climático, temperado e quase igual durante o ano inteiro, dividido por uma estação seca e uma outra das chuvas, possuem um céu azul especial e diferente, como não há em nenhum outro lugar do mundo, quiçá seja o reflexo espelhado do profundo azul-turquesa das águas do seu imenso lago.
As suas longas e extensas planícies, em que a vista se perde no horizonte sem se encontrar qualquer obstáculo, fazem criar no espírito de qualquer indivíduo uma melancolia da pequenez humana e ao mesmo tempo uma ambição tão grande quanto o tamanho quase infinito das terras prenhas de vida e de futuras promessas de fartura e de abundância.
Somente as chuvas diluvianas e as trovoadas incandescentes dos céus, antecedidas sempre de esmagadoras pressões atmosféricas, conseguiam, por momentos e nos instantes em que irrompiam, fazer lembrar aos humanos que naquela a terra a natureza também tinha os seus próprios caprichos.
Os seus animais selvagens, macacos, hienas, leões, elefantes, antílopes, búfalos, javalis e todos os outros, proliferam e pululam vertiginosamente em todos os cantos, os domésticos parem a um ritmo de duas criações por ano, as sementeiras e as colheitas fazem-se duas, nalguns casos até três, vezes ao ano, tal qual as árvores de fruto dão abundatemente no mesmo número os seus frutos.
A bela e plana província do Niassa é banhada pelo imenso lago do mesmo nome, ou de Malawi pelo país vizinho do mesmo nome.
O Lago Niassa ou Mawai, um lago tão belo e tão ímpar, quanto faz ondas e onde as pessoas se banham durante o dia enquanto os crocodilos dormem, e à noite se veem estes répteis serpentear pelas águas e a se alimentarem.
Com uma orientação norte-sul, o lago tem quinhentos e sessenta quilómetros de comprimento, oitenta quilómetros de largura máxima e uma profundidade máxima de setecentos metros.
O povo indígena natural e dominante do lago, dos dois lados da fronteira natural da água, dividindo os atuais países de Moçambique e do Malawi, resultantes das divisões imperiais portuguesa e britânica do Século XIX, são os Nianjas, ou o "povo do lago".
Na língua chiNyanja, falada na orla moçambicana do lago, niassa significa "lago", tal como o próprio nome do povo que usa aquela língua.
Os Nianjas, também apelidados de ChiNianjas, são um povo agrícola e piscatório, cuja religião ancestral era o animismo, temperado pelo monoteísmo de cruzadas e mistas influências rituais de cariz muçulmana e, mas mais remotamente e que se perde na história, cristã.
O Garcês, natural do Fundão, na Beira Baixa, morreu pouco tempo depois de voltar à sua terra natal de Portugal, correndo agora a lenda nos arredores da cidade de Vila Cabral, agora Lichinga, a capital do Distrito do Niassa, de que nas noites de luar descoberto se ouve ao longe o roncar de um Jeep, tal qual aquele homem o fazia conduzindo no seu desbravar das novas terras e levando consigo a língua e os costumes portugueses aos povos africanos.
(continua)
A relação destes dois seres tão diferentes e tão estranhos entre si, para mim, parece assemelhar-se à da perspetiva de um descobridor perante os povos nativos das áfricas, quais portugueses do século XV perante os novos mundos que ia descobrindo após ultrapassar o Cabo Bojador.
Famoso cabo esse o ultrapassado por Gil Eanes, em 1434, um mito que até aí inspirou lendas e medos sobre a existência de monstros marinhos e a falsa convicção da sua intransponibilidade, em virtude do desaparecimento de embarcações que anteriormente o tinham tentado contornar.
O Cabo Bojador, sendo constituído por recifes de arestas pontiagudas, pelo seu aspeto, era de maneira a dar aquela região um carácter ainda mais assustador e parecendo assim, às mentes mais medrosas e mesquinhas, tornar a navegação muito arriscada.
Qual medo infundado, como tantas outras prisões de grilhetas mentais, logo que dobrado, veio a mostrar um imenso novo mundo de espantosos e esplendorosos mundos que seguiram à primeira baía plácida encontrada, de ventos amenos, e derrubando os medievos e velhos receios passados.
Vencido o cabo e após ele abriram-se os caminhos para os grandes descobrimentos portugueses, essa grande e primeira globalização cultural, económica, social e étnica.
O mundo dos homens e a sua evolução passada até aí, de milhões de anos, vieram a reencontrar-se pela corajosa ação dos homens valentes de Portugal dos séculos XIV a XVI.
Estava criada a primeira civilização transoceânica.
Esta história fantástica, assim contada, traz-nos à memória o poema "Mar Português" de Fernando Pessoa:
"Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas foi nele que espelhou o céu."
(continua)
Poderia escrever, claro está se tivesse génio para tanto, que não tenho, um livro sobre a relação tão especialmente amorosa entre o dono da tabacaria e a sua namorada.
Vou-me limitar, apenas, umas pequenas palavras alinhavadas, para que o destino daquelas duas personagens se sinta livre de escrever o enredo pelo qual eles dois ainda hão-de dar frutos e descobridores ao mundo.
Entre aqueles dois seres, certamente, só pode mesmo haver amor, sou eu que aqui vos digo e afianço, com toda a certeza, e o juro do que estou total e plenamente convencido.
Pois como poderá de outra maneira se entender que aquela flor angelical, de gestos tão finos e repenicados, que é capaz de varrer o chão usando numa mão a vassoura e na outra a longa pá de lixo e o faça, graciosa e levemente, em gestos curtos e pausados, sem curvar as suas costas, um sequer milímetro, e sempre de cabeça levantada, tal qual uma bailarina hirta executa uma longa e graciosa valsa, seja capaz de amar aquele ser tão destrambelhado e tosco, sempre de cigarro na ponta da boca, de barba de fazer há três dias e com as fraldas sujas da camisa de fora, umas vezes aviando clientes na tabacaria e outras indo a nenhures e deixando o estabelecimento entregue aquela graça tão-sem jeito?
Certamente é amor, digo-o com inveja e admiração.
Só pode ser e é certamente!
Dois seres tão diferentes e ao mesmo tempo tão apaixonados, o que eu já os vi babados a admirarem-se mutuamente na pastelaria ao lado; enquanto ela comia e ao mesmo tempo saboreava o chantili com a ponta da língua um "éclair" e ele sorvia audivelmente um café, só pode ser, dúvidas não existem.
E sorriam um para o outro.
Ele usualmente fala entre gargalhadas e faz contas na loja perdendo-se nos trocos, já ela devolve-nos as moedas de troco como quem nos dá pétalas de rosa para nos perfumar o jornal do dia.
Mas a pergunta e a dúvida, que é de fascínio e admiração, interroga-nos e espanta-nos, como é que aquela donzela tão-sem jeito, reluzente, qual fogo sereno de inverno à lareira, de cintura fina, longas pernas, dourados e compridos cabelos, de face estreita, estreito e comprido nariz, de pequenos e luminosos olhos e de sorriso maroto sempre pronto, pode amar um ser tão-sem jeito e bruto?
Aqueles dois seres amam-se, o amor dela só pode ser de fascínio por um qualquer desconhecido mundo novo a desbravar.
Já o amor dele por ela virá de uma qualquer atração semelhante à de um indígena ou nativo por uma condição e qualidade que ele nunca, jamais, alcançará.
(continua)
Na verdade, cada vez mais me convenço, apesar mesmo de poder ser entendido como um sortilégio, o amor é algo que só está ao alcance de pessoas de muita e fina sensibilidade.
Ou então, vá-se lá perceber e no que não existe alguma contradição, pode até funcionar ao contrário: aqueles que o recebem em jorros e abundantemente, sem nada fazerem para o receberem, apenas o aceitando, basta-lhes e abunda pela mera paz de espírito de o aceitar e receber, qual cria apascentando-se no leite materno.
O amor é também para mim, no que penso só há bem pouco tempo e vim a constatar, o maior e mais evidente sinal de inteligência e sabedoria conquistadas por qualquer ser humano pode alcançar.
Não é nem o conhecimento de matemática, nem física quântica ou nuclear, não é cirurgia vascular ou neurocirurgia, nem sequer é possuir um elevado Quociente de Inteligência.
O amor é pura inteligência, a mais alta capacidade de um qualquer ser humano.
Mas o amor é também de uma tal evidência e simplicidade, que assusta mesmo aos mais intrigados e estudiosos sobre o assunto.
O amor possui também vários graus e diferentes expressões, mas todos eles se encaminham e se encontram nesse particular desprendimento da alma humana e no ato de querer fazer absolutamente feliz o outro, por maior qualquer que seja o custo, até mesmo e como se sabem nalguns casos, com o sacrifício da sua própria vida.
Este é o verdadeiro amor, o único e mais nenhum outro existe; claro está que pode assumir e revelar-se em várias facetas e várias formas: no amor de mãe, de filho, dos cônjuges ou até mesmo entre amigos.
Um amor assim, tão desprendido e, portanto, benigno, jamais pode fazer-se e dar-se em prejuízo de si mesmo, portanto do sentimento e das próprias pessoas ou de um qualquer terceiro.
É algo que cresce e se manifesta recíproca, fielmente e sem dor entre duas pessoas, é uma sementeira que é colheita, é um semeador acariciando a semente e alimentando-se dos seus frutos.
Vem tudo isto a propósito do amor do dono da tabacaria da minha rua e da sua namorada!
(continua)