“A organização da justiça social, no quadro da sociedade capitalista, requer uma instituição, o Estado. Tal como o misterioso Mercado, também o Estado é um conjunto de seres humanos que fazem funcionar a instituição. O capitalismo conduziu ao desenvolvimento de uma forma típica de pseudodemocracia, a democracia representativa, que criou uma nova carreira profissional, a de político.
A política tornou-se uma profissão desde o início do século XX. Os políticos de carreira, classe especial de cidadãos, entram na carreira desde o início da idade adulta e tendem a manter-se nela até à velhice ou à morte (sem aposentação obrigatória). Vivem para a política mas também da política (Weber, 1919). Além da remuneração oficial, os que estão em relação direta com a vida económica podem tirar proveito de benefícios dissimulados em contrapartida de apoio político.
Os políticos agrupam-se em partidos, escolhem o que melhor lhes convém por motivos ideológicos, por vezes de maneira oportunista. Como o partido são os seus quadros, o seu interesse confunde-se com o interesse profissional destes, temperado pelos seus valores ideológicos, ou os valores ideológicos temperados pelos interesses profissionais, em proporção variável. Menos visíveis mas mais decisivos, formam-se interesses entre o partido e os grupos económicos. A oligarquia política e a económica estabelecem acordos, trocam serviços. Hoje assiste-se à interpenetração do protagonismo político e económico: nomeiam-se ex-presidentes de instituições financeiras para membros do governo, e ex-membros do governo para presidentes de instituições financeiras.
Estes interesses individuais e de grupo determinam a vida política dos países de democracia representativa, não favorecendo a representação do povo e a direcção do Estado pelos mais capazes, honestos e idealistas. Por influência do capitalismo triunfante, um dos seus mecanismos, a concorrência, é apresentada como motor de progresso económico. No campo da política, a concorrência entre políticos profissionais e entre partidos com objetivos e interesses autocentrados, numa luta egoísta pela própria sobrevivência, não é propícia a uma governação que favoreça o conjunto dos cidadãos ou a sua maioria. A ilustração mais caricatural desta situação talvez seja a que deu o maior partido da direita em França no final de 2012.
O leitor perguntará a si próprio se penso que os partidos e os políticos profissionais não devem bem-vindos numa democracia. Parece-me normal que alguém tenha vontade de ser ativo politicamente durante toda a sua vida, mas não creio que seja bom, nem para essa pessoa nem para a sociedade, que ela só tenha uma formação de político e que não possa exercer uma profissão se o povo for maioritário a votar o seu «ostracismo». Político não deve ser profissão. Quanto aos partidos, o problema não está na sua existência, está na maneira como os partidos atuais agem na sociedade, designadamente na sua relação com as instituições.
O mecanismo concorrencial do engrandecimento próprio e de exclusão dos outros, característico do funcionamento da economia capitalista, tem modelado os sistemas eleitorais. Os partidos no poder impõem regras que os favorecem. Em muitos países só os partidos podem apresentar candidatos, já que o cidadão tem o direito de eleger mas não de ser eleito, pelo menos sem passar por um partido. O partido tem o direito de tomar a iniciativa e de apresentar «independentes», mas fá-lo por conveniência própria quando estes candidatos podem atrair um número importante de votos. Outra regra é a limitação de representação partidária no parlamento aos partidos que obtiveram pelo menos uma determinada percentagem de votos. Os maiores excluem os mais pequenos para dividirem o poder em si.
Face aos partidos e aos políticos profissionais estão os eleitores. Muitos partilham objetivos ou interesses com um partido. A maioria não ignora as motivações egoístas dos partidos e dos políticos que contribuem para o eleger, mas acredita sem grandes esperanças serem os menos maus dos piores. Enfim, outros, cada vez mais numerosos, preferem não votar por alheamento, desconsolo ou raiva.
Os políticos profissionais, qualquer que seja a sua orientação, apropriaram-se do Estado. Este tornou-se a sua propriedade privada.
Enquanto os «representantes» do povo forem políticos profissionais, o Estado será um poder confiscado. Instaurada uma democracia autêntica, o Estado poderá tornar-se o que o neoliberal Hayek queria que fosse: um mero gestor. É exactamente o que acontece hoje nas instituições da União Europeia: um Parlamento e um presidente impotentes e uma Comissão que gere o que lhe é deixado como atribuições sob a influência dos países mais poderosos da União, sobretudo da Alemanha.”
"Alfabetizar em Democracia", de José Morais, Fundação Manuel dos Santos.