Ideias e poesias, por mim próprio.

Domingo, 11 de Março de 2012
O dono da tabacaria e a sua namorada (4).

Um verdadeiro espanto, só pode ter sido, tal qual como deve ter sentido o maior criador de vacas do Norte de Moçambique, conhecido pelo seu apelido de Garcês, quando um certo dia viu um feiticeiro nianja ressuscitar um morto. 

Conta-se que este intrépido português, homem robusto, atarracado mas hercúleo, de não mais de um metro e sessenta de altura, cabelo crespo e moreno, conhecido por uma coragem nunca vista e sem igual, possuiria em meados dos anos 70 mais de dez mil rezes numa extensa propriedade de latifúndio no Niassa, pouco tempos antes da independência de Moçambique e a sua separação do último império português.

Contam também que a sua imensa criação de gado bovino muito se ficaria a dever à especial bênção que ele lançava sobre os animais, lhe ensinada pelo feiticeiro nianja, assim fazendo-os proliferar na razão espantosa de cada vaca parir à vez dois bezerros.

Segundo os habitantes naturais do Niassa o dito feiticeiro teria já de vida mais de duzentos anos, no que eu sou tentado a acreditar por um certo dia o ter visto também.

A sua cara enrugada e velha como a de uma múmia, os seus dentes pontiagudos e afiados pela sua faca de pedra que trazia presa à cintura por uma tigrada pele seca de jiboia e com a qual sangrava também os males dos doentes, convenceram-me, desde o dia em que o vi, nos meus sete anos de idade, tanto o medo terrífico como a idade bicentenária daquela seca e estreita figura do assustador feiticeiro.

Essas terras africanas, do norte de Moçambique, qual resto paradisíaco climático, temperado e quase igual durante o ano inteiro, dividido por uma estação seca e uma outra das chuvas, possuem um céu azul especial e diferente, como não há em nenhum outro lugar do mundo, quiçá seja o reflexo espelhado do profundo azul-turquesa das águas do seu imenso lago. 

As suas longas e extensas planícies, em que a vista se perde no horizonte sem se encontrar qualquer obstáculo, fazem criar no espírito de qualquer indivíduo uma melancolia da pequenez humana e ao mesmo tempo uma ambição tão grande quanto o tamanho quase infinito das terras prenhas de vida e de futuras promessas de fartura e de abundância.

Somente as chuvas diluvianas e as trovoadas incandescentes dos céus, antecedidas sempre de esmagadoras pressões atmosféricas, conseguiam, por momentos e nos instantes em que irrompiam, fazer lembrar aos humanos que naquela a terra a natureza também tinha os seus próprios caprichos.

Os seus animais selvagens, macacos, hienas, leões, elefantes, antílopes, búfalos, javalis e todos os outros, proliferam e pululam vertiginosamente em todos os cantos, os domésticos parem a um ritmo de duas criações por ano, as sementeiras e as colheitas fazem-se duas, nalguns casos até três, vezes ao ano, tal qual as árvores de fruto dão abundatemente no mesmo número os seus frutos.

A bela e plana província do Niassa é banhada pelo imenso lago do mesmo nome, ou de Malawi pelo país vizinho do mesmo nome.

O Lago Niassa ou Mawai, um lago tão belo e tão ímpar, quanto faz ondas e onde as pessoas se banham durante o dia enquanto os crocodilos dormem, e à noite se veem estes répteis serpentear pelas águas e a se alimentarem. 

Com uma orientação norte-sul, o lago tem quinhentos e sessenta quilómetros de comprimento, oitenta quilómetros de largura máxima e uma profundidade máxima de setecentos metros.

O povo indígena natural e dominante do lago, dos dois lados da fronteira natural da água, dividindo os atuais países de Moçambique e do Malawi, resultantes das divisões imperiais portuguesa e britânica do Século XIX, são os Nianjas, ou o "povo do lago". 
Na língua chiNyanja, falada na orla moçambicana do lago, niassa significa "lago", tal como o próprio nome do povo que usa aquela língua.

Os Nianjas, também apelidados de ChiNianjas, são um povo agrícola e piscatório, cuja religião ancestral era o animismo, temperado pelo monoteísmo de cruzadas e mistas influências rituais de cariz muçulmana e, mas mais remotamente e que se perde na história, cristã.

O Garcês, natural do Fundão, na Beira Baixa, morreu pouco tempo depois de voltar à sua terra natal de Portugal, correndo agora a lenda nos arredores da cidade de Vila Cabral, agora Lichinga, a capital do Distrito do Niassa, de que nas noites de luar descoberto se ouve ao longe o roncar de um Jeep, tal qual aquele homem o fazia conduzindo no seu desbravar das novas terras e levando consigo a língua e os costumes portugueses aos povos africanos.

 

(continua)



publicado por Sérgio Passos (twitter: @passossergio) às 17:52
link do post | comentar | favorito

Sábado, 10 de Março de 2012
O dono da tabacaria e a sua namorada (3).

A relação destes dois seres tão diferentes e tão estranhos entre si, para mim, parece assemelhar-se à da perspetiva de um descobridor perante os povos nativos das áfricas, quais portugueses do século XV perante os novos mundos que ia descobrindo após ultrapassar o Cabo Bojador.

Famoso cabo esse o ultrapassado por Gil Eanes, em 1434, um mito que até aí inspirou lendas e medos sobre a existência de monstros marinhos e a falsa convicção da sua intransponibilidade, em virtude do desaparecimento de embarcações que anteriormente o tinham tentado contornar.

O Cabo Bojador, sendo constituído por recifes de arestas pontiagudas, pelo seu aspeto, era de maneira a dar aquela região um carácter ainda mais assustador e parecendo assim, às mentes mais medrosas e mesquinhas, tornar a navegação muito arriscada.

Qual medo infundado, como tantas outras prisões de grilhetas mentais, logo que dobrado, veio a mostrar um imenso novo mundo de espantosos e esplendorosos mundos que seguiram à primeira baía plácida encontrada, de ventos amenos, e derrubando os medievos e velhos receios passados.

Vencido o cabo e após ele abriram-se os caminhos para os grandes descobrimentos portugueses, essa grande e primeira globalização cultural, económica, social e étnica.

O mundo dos homens e a sua evolução passada até aí, de milhões de anos, vieram a reencontrar-se pela corajosa ação dos homens valentes de Portugal dos séculos XIV a XVI.

Estava criada a primeira civilização transoceânica.
Esta história fantástica, assim contada, traz-nos à memória o poema "Mar Português" de Fernando Pessoa:

"Valeu a pena? Tudo vale a pena

Se a alma não é pequena.

Quem quer passar além do Bojador

Tem que passar além da dor.

Deus ao mar o perigo e o abismo deu,

Mas foi nele que espelhou o céu."

 

(continua)



publicado por Sérgio Passos (twitter: @passossergio) às 16:21
link do post | comentar | favorito

Sexta-feira, 9 de Março de 2012
O dono da tabacaria e a sua namorada (2).

Poderia escrever, claro está se tivesse génio para tanto, que não tenho, um livro sobre a relação tão especialmente amorosa entre o dono da tabacaria e a sua namorada.

Vou-me limitar, apenas, umas pequenas palavras alinhavadas, para que o destino daquelas duas personagens se sinta livre de escrever o enredo pelo qual eles dois ainda hão-de dar frutos e descobridores ao mundo.

Entre aqueles dois seres, certamente, só pode mesmo haver amor, sou eu que aqui vos digo e afianço, com toda a certeza, e o juro do que estou total e plenamente convencido.

Pois como poderá de outra maneira se entender que aquela flor angelical, de gestos tão finos e repenicados, que é capaz de varrer o chão usando numa mão a vassoura e na outra a longa pá de lixo e o faça, graciosa e levemente, em gestos curtos e pausados, sem curvar as suas costas, um sequer milímetro, e sempre de cabeça levantada, tal qual uma bailarina hirta executa uma longa e graciosa valsa, seja capaz de amar aquele ser tão destrambelhado e tosco, sempre de cigarro na ponta da boca, de barba de fazer há três dias e com as fraldas sujas da camisa de fora, umas vezes aviando clientes na tabacaria e outras indo a nenhures e deixando o estabelecimento entregue aquela graça tão-sem jeito?
Certamente é amor, digo-o com inveja e admiração.

Só pode ser e é certamente!

Dois seres tão diferentes e ao mesmo tempo tão apaixonados, o que eu já os vi babados a admirarem-se mutuamente na pastelaria ao lado; enquanto ela comia e ao mesmo tempo saboreava o chantili com a ponta da língua um "éclair" e ele sorvia audivelmente um café, só pode ser, dúvidas não existem.

E sorriam um para o outro.

Ele usualmente fala entre gargalhadas e faz contas na loja perdendo-se nos trocos, já ela devolve-nos as moedas de troco como quem nos dá pétalas de rosa para nos perfumar o jornal do dia.

Mas a pergunta e a dúvida, que é de fascínio e admiração, interroga-nos e espanta-nos, como é que aquela donzela tão-sem jeito, reluzente, qual fogo sereno de inverno à lareira, de cintura fina, longas pernas, dourados e compridos cabelos, de face estreita, estreito e comprido nariz, de pequenos e luminosos olhos e de sorriso maroto sempre pronto, pode amar um ser tão-sem jeito e bruto?

Aqueles dois seres amam-se, o amor dela só pode ser de fascínio por um qualquer desconhecido mundo novo a desbravar.

Já o amor dele por ela virá de uma qualquer atração semelhante à de um indígena ou nativo por uma condição e qualidade que ele nunca, jamais, alcançará.

 

(continua)



publicado por Sérgio Passos (twitter: @passossergio) às 11:31
link do post | comentar | favorito

O dono da tabacaria e a sua namorada. (1)

Na verdade, cada vez mais me convenço, apesar mesmo de poder ser entendido como um sortilégio, o amor é algo que só está ao alcance de pessoas de muita e fina sensibilidade.

Ou então, vá-se lá perceber  e no que não existe alguma contradição, pode até funcionar ao contrário: aqueles que o recebem em jorros e abundantemente, sem nada fazerem para o receberem, apenas o aceitando, basta-lhes e abunda pela mera paz de espírito de o aceitar e receber, qual cria apascentando-se no leite materno.

O amor é também para mim, no que penso só há bem pouco tempo e vim a constatar, o maior e mais evidente sinal de inteligência e sabedoria conquistadas por qualquer ser humano pode alcançar.

Não é nem o conhecimento de matemática, nem física quântica ou nuclear, não é cirurgia vascular ou neurocirurgia, nem sequer é possuir um elevado Quociente de Inteligência.

O amor é pura inteligência, a mais alta capacidade de um qualquer ser humano.

Mas o amor é também de uma tal evidência e simplicidade, que assusta mesmo aos mais intrigados e estudiosos sobre o assunto.

O amor possui também vários graus e diferentes expressões, mas todos eles se encaminham e se encontram nesse particular desprendimento da alma humana e no ato de querer fazer absolutamente feliz o outro, por maior qualquer que seja o custo, até mesmo e como se sabem nalguns casos, com o sacrifício da sua própria vida.

Este é o verdadeiro amor, o único e mais nenhum outro existe; claro está que pode assumir e revelar-se em várias facetas e várias formas: no amor de mãe, de filho, dos cônjuges ou até mesmo entre amigos.

Um amor assim, tão desprendido e, portanto, benigno, jamais pode fazer-se e dar-se em prejuízo de si mesmo, portanto do sentimento e das próprias pessoas ou de um qualquer terceiro.

É algo que cresce e se manifesta recíproca, fielmente e sem dor entre duas pessoas, é uma sementeira que é colheita, é um semeador acariciando a semente e alimentando-se dos seus frutos.

Vem tudo isto a propósito do amor do dono da tabacaria da minha rua e da sua namorada!

 

(continua)



publicado por Sérgio Passos (twitter: @passossergio) às 00:35
link do post | comentar | favorito

mais sobre mim
pesquisar
 
Novembro 2024
Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab

1
2

3
4
5
6
7
8
9

10
11
12
13
14
15
16

17
18
19
20
21
22
23

24
25
26
27
28
29
30


posts recentes

O dono da tabacaria e a s...

O dono da tabacaria e a s...

O dono da tabacaria e a s...

O dono da tabacaria e a s...

arquivos

Novembro 2024

Outubro 2024

Agosto 2024

Julho 2024

Junho 2024

Maio 2024

Abril 2024

Março 2024

Fevereiro 2024

Dezembro 2023

Novembro 2023

Outubro 2023

Julho 2023

Junho 2023

Maio 2023

Abril 2023

Março 2023

Janeiro 2023

Dezembro 2022

Novembro 2022

Setembro 2022

Agosto 2022

Junho 2022

Maio 2022

Abril 2022

Março 2022

Fevereiro 2022

Janeiro 2022

Dezembro 2021

Novembro 2021

Outubro 2021

Setembro 2021

Agosto 2021

Julho 2021

Junho 2021

Maio 2021

Abril 2021

Março 2021

Fevereiro 2021

Janeiro 2021

Dezembro 2020

Novembro 2020

Outubro 2020

Setembro 2020

Agosto 2020

Julho 2020

Junho 2020

Maio 2020

Abril 2020

Março 2020

Fevereiro 2020

Janeiro 2020

Dezembro 2019

Novembro 2019

Outubro 2019

Setembro 2019

Agosto 2019

Julho 2019

Junho 2019

Maio 2019

Abril 2019

Março 2019

Fevereiro 2019

Janeiro 2019

Dezembro 2018

Novembro 2018

Outubro 2018

Setembro 2018

Agosto 2018

Junho 2018

Março 2018

Fevereiro 2018

Janeiro 2018

Dezembro 2017

Novembro 2017

Outubro 2017

Setembro 2017

Agosto 2017

Julho 2017

Junho 2017

Maio 2017

Abril 2017

Março 2017

Fevereiro 2017

Janeiro 2017

Dezembro 2016

Novembro 2016

Outubro 2016

Setembro 2016

Agosto 2016

Julho 2016

Junho 2016

Maio 2016

Abril 2016

Março 2016

Fevereiro 2016

Janeiro 2016

Dezembro 2015

Novembro 2015

Outubro 2015

Setembro 2015

Agosto 2015

Julho 2015

Junho 2015

Maio 2015

Abril 2015

Março 2015

Fevereiro 2015

Janeiro 2015

Dezembro 2014

Novembro 2014

Outubro 2014

Setembro 2014

Agosto 2014

Julho 2014

Junho 2014

Maio 2014

Abril 2014

Março 2014

Fevereiro 2014

Janeiro 2014

Dezembro 2013

Novembro 2013

Outubro 2013

Setembro 2013

Agosto 2013

Julho 2013

Junho 2013

Maio 2013

Abril 2013

Março 2013

Fevereiro 2013

Janeiro 2013

Dezembro 2012

Novembro 2012

Outubro 2012

Setembro 2012

Agosto 2012

Julho 2012

Junho 2012

Maio 2012

Abril 2012

Março 2012

Fevereiro 2012

Janeiro 2012

Dezembro 2011

Novembro 2011

Outubro 2011

Setembro 2011

Agosto 2011

Julho 2011

Junho 2011

Maio 2011

Abril 2011

Março 2011

Fevereiro 2011

Janeiro 2011

Dezembro 2010

Novembro 2010

Outubro 2010

Setembro 2010

Agosto 2010

Julho 2010

Junho 2010

Maio 2010

Abril 2010

Março 2010

Novembro 2008

Outubro 2008

Setembro 2008

tags

todas as tags

subscrever feeds
últ. comentários
"Seguem-se os funerais e o rescaldo das misérias, ...
O dito politicamente correcto é na verdade extrema...
Boa noite, SérgioDe facto é impossível falar com q...
Nada de novo do que escreveu, não me acrescenta na...
Boa tarde, Sérgio1 -«Ignorância histórica sua. Moç...
Ignorância histórica sua. Moçambique, Angola e out...
Deve estar a falar do seu amigo Marcelo Rebelo Bal...
Boa tarde, SérgioApenas pelo simples facto de term...
Retornados racista nada têm a receber.
"Os próximos dois anos serão de pura caça ao voto,...
blogs SAPO
Em destaque no SAPO Blogs
pub