«Ainda as listas»
Por António Barreto.
Jornal "Público", 16 de Janeiro de 2005.
«A discussão sobre os sistemas eleitorais pode, em plena campanha, parecer extemporânea. Não é a altura adequada a mudar as regras e as atenções estão mais viradas para os temas próprios da operação, seja a habitual demagogia, sejam os problemas sociais e políticos. No entanto, a oportunidade é maior do que parece: diante de nós estão todos os exemplos do sistema absurdo em vigor. E também é pertinente convidar os partidos a definirem, nos programas, as suas opiniões sobre o assunto.
Um dos motivos invocados para debater ou corrigir o sistema eleitoral consiste na necessidade de produzir um parlamento melhor e eleger deputados mais capazes. Eis uma ideia errada que corre o risco de tornar inúteis as discussões. Nada garante que as actuais listas blindadas de candidatos substituíveis produzam deputados inferiores ou superiores aos que resultariam de listas individuais e de círculos uninominais. Mesmo que fossem permitidas as candidaturas independentes, que defendo, ou que fossem proibidas as substituições dos eleitos, que preconizo, nenhum dispositivo miraculoso faria com que os felizes vencedores fossem impolutos, competentes e de dedicados servidores da causa pública.
Os argumentos sobre o valor do deputado desnaturam o debate. Na verdade, o que está em causa são os eleitores, não os eleitos. O aspecto mais importante de um sistema eleitoral é o poder conferido ao eleitor, não a qualidade do órgão eleito. É nesse sentido que defendo a criação de círculos uninominais; a proibição de substituições de deputados eleitos; e a possibilidade de apresentação de candidaturas independentes. Como não existem sistemas eleitorais perfeitos, sei que o de círculos uninominais tem defeitos. Mas também sabemos que existem dispositivos para os compensar ou corrigir. Em França, na Grã Bretanha, na Irlanda, na Alemanha, na Dinamarca e noutros países, há sólidas experiências consolidadas. Por mim, prefiro o sistema uninominal a duas voltas, como em França, mas não me choca que outros sejam os correctores, como, por exemplo, um círculo nacional.
Não sei, repito, se os círculos uninominais fazem melhores ou piores deputados do que aqueles que temos. Nem sei se os círculos uninominais estimulam ou travam os deputados pára-quedistas impostos pelo chefe nacional do partido e por Lisboa, inquietação expressa por Vital Moreira neste jornal. Mas sei que, com tempo, os círculos uninominais alteram, a favor do eleitorado e das comunidades locais, incluindo as secções dos partidos, a relação de forças com a capital e os dirigentes partidários. E é isso que pretendo: um sistema eleitoral que dê ao eleitorado a capacidade de identificar o mandato que confere, isto é, de saber em quem vota e de ter a certeza de que o eleito cumpre o seu mandato até ao fim (ou que, se o não fizer, o seu lugar não será preenchido por obscuro suplente, mas sim substituído por nova eleição parcial). O que desejo é que o eleitor tenha nas suas mãos um boletim de voto em que constem os nomes de pessoas, cada uma representando um partido, um grupo, uma ideologia, um interesse ou mesmo um capricho. Não quero que o eleitor tenha nas mãos um boletim de voto com logotipos e emblemas.
Pretendo que os cidadãos, nas suas comunidades, organizados ou não em partidos, tenham a capacidade de se entenderem na escolha de um candidato; ou possam escolher, entre vários do mesmo partido, o favorito; ou consigam negociar com o poder central do partido a designação, entre indígenas e pára-quedistas, do candidato; ou finalmente possam procurar, noutras paragens, um candidato que julguem ser capaz de defender as suas ideias e os seus interesses.
Com os círculos uninominais, confere-se mais liberdade individual ao deputado eleito. A vantagem não é sobretudo dele, ou não tanto dele, mas, uma vez mais, do eleitorado. Este ficará melhor representado se o seu deputado tiver uma independência razoável que lhe permita negociar em permanência com os poderes centrais. Um deputado mais livre e mais independente dos chefes partidários fica, ao mesmo tempo, mais dependente do seu eleitorado. O que é positivo. O objectivo é o de reforçar esta dependência, não para tolher o seu papel de representante, mas para lhe permitir negociar as duas dependências, do partido nacional e do organismo local ou da comunidade a que pertence.
Desejo que os eleitores tenham mais liberdade, mais força e mais escolhas e não estejam limitados aos candidatos oficiais dos partidos. Quero que tenham a possibilidade de votar em candidatos independentes ou de partidos locais ou mesmo de grupos de interesses efémeros. Essa mera possibilidade aumenta os poderes dos eleitores e dos membros locais dos partidos, que ficariam assim mais bem armados para negociar a selecção de candidatos. Não esqueço que uma das capacidades dos cidadãos ou órgãos locais dos partidos será a de procurar, fora das suas fronteiras territoriais, candidatos fortes e conhecidos. A liberdade do cidadão não se pode limitar a ter de escolher entre as pessoas da sua comunidade: pode muito bem acontecer que se sinta mais bem representado por uma figura exterior. Desde que desejada e negociada.
Os círculos uninominais transformam um deputado eleito em representante de toda a comunidade do seu círculo. Em contraste, as listas partidárias blindadas, em sistema proporcional, fazem dos deputados representantes dos partidos. Em Portugal não há um deputado de Vila Real, de Benfica ou de Loulé, mas sim do PSD, do PS ou do PCP. Com deputados de círculo, qualquer cidadão, em qualquer comunidade, pode dirigir-se ao seu deputado, sem olhar às suas preferências partidárias. A proeminência partidária (na verdade, um monopólio) é tal que há em Portugal muita gente que não tem deputado. Com o sistema que temos, seria necessário que os partidos tivessem deputados em todos os distritos para que toda a gente se sentisse representada.
Em resumo. A questão pode parecer obscura, distante dos problemas emocionantes da saúde e do desemprego. Mas, na verdade, é no sistema eleitoral fechado, de monopólio partidário e de irresponsabilidade individual que reside uma das causas do mal-estar político crescente em que vivemos. Um sistema eleitoral estabelece regras e relações de força entre os cidadãos e as organizações políticas, entre eleitores e partidos, entre as comunidades locais e o poder central. Em Portugal, essa relação é desequilibrada, sempre em detrimento do eleitor, do cidadão, da comunidade e da organização local do partido ou dos interesses. É esse desequilíbrio que importa corrigir, recorrendo aos círculos uninominais e a um sistema aberto. Quase só os dirigentes partidários o negam. Percebe-se porquê. Como sempre, o voto é uma arma. Mas hoje, não é do povo: é dos chefes de partido.»